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19 de Abril de 2024

No meio do caminho tinha um livro

Publicado por João Paulo Morais
há 9 anos

Por João Marcos Buch

Audiência onde o réu, jovem de 20 anos, é julgado por roubo de celular, contra dois adolescentes que iam embora após o colégio. O réu confessa, diz estar arrependido e quer fazer tratamento para dependência de crack, pois quando dos assaltos tinha usado todo o dinheiro de seu serviço de servente com droga. Terminada a audiência, termos assinados…

- Posso ficar com uma cópia deste termo? – Pergunta o réu.

- Mas por quê? – questiona o juiz – É apenas um termo de deliberação – O juiz prepara-se para voltar ao gabinete.

- É porque já li tudo que minha família me mandou lá na cadeia e pelo menos é algo mais para eu ler – A linguagem do preso era em perfeito português. O juiz faz meia-volta, resolve ir adiante na conversa.

- Qual o último livro que você leu?

- Comédias da Vida Privada, do Luis Fernando Veríssimo – Responde o réu de pronto.

- Gostou? – Insiste o juiz.

- Muito, é muito engraçado – Realmente o réu era leitor, um bom leitor, concluiu o juiz.

- Espere um pouco, vou ver se tenho algum livro para te emprestar.

No gabinete, vasculha as prateleiras, acha o Xangô de Backerstreet, do Jô Soares, lido tempos atrás e perdido entre seus livros jurídicos. Volta à sala de audiências.

- Serve este?

- Pôxa doutor, do Jô Soares. Claro que sim. Muito obrigado. Não vejo a hora de chegar no presídio para começar a ler.

O caso acima, verídico, serve para ilustrar a importância de, ao lado do trabalho, possibilitar-se a leitura de obras literárias a pessoas que estão presas. Qualquer um ao ler um livro reflete, identifica-se ou não com o tema e personagens, questiona, pensa. Pela leitura a pessoa desenvolve a empatia e consequentemente compreende melhor a sua própria vida. E se isso contribui para a educação, então é claro que o hábito da leitura é mais uma forma de resgate ético, de contribuição para a harmônica integração social do detento no dia em que retornar a liberdade.

O jovem preso tinha consciência de que havia prejudicado outros adolescentes, sabia que teria que pagar por isso e compreendia como tinha chegado até aquele ponto na vida, apontando inclusive um caminho para tentar sair da vida marginal. Essa compreensão ele conseguiu com a leitura, estou certo.

Por isso, desde o ano de 2013, os detentos do complexo prisional de Joinville passaram a ter a possibilidade de ler, num prazo de 20 dias, uma obra da literatura clássica, com mais 10 dias para apresentar um resumo do livro. Assim podem abater 4 dias de pena. É o que consta da Portaria n.8/2013 da Vara de Execuções Penais da Comarca de Joinville.

- Tenha uma boa leitura rapaz – disse o juiz, despedindo-se do réu.

- Terei sim. Depois de ler vou passar para a frente. Posso?

- Um livro é para ser lido. Mande adiante.

E lá foi o réu, de volta para o Presídio, escoltado, livre.

João Marcos Buch é Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais e Corregedor do Sistema Prisional da Comarca de Joinville


Fonte: Justificando

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Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/no-meio-do-caminho-tinha-um-livro/156972951

11 Comentários

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Isso é extremamente benéfico não só ao réu, mas a todo o sistema penal. São medidas como essas - humanas, conscientes, lúcidas e aplicáveis - que geram eficiência ao Direito Penal na prática e possibilitam um vislumbre de solução a longo prazo. Parabéns à Vara de Execuções Penais de Joinville - SC! continuar lendo

Fiquei curioso com o caso. Assim que tiver oportunidade vou conferir pessoalmente, se a serventia for bem receptiva.
Aqui a gente faz isso também, exige resumo dos réus. O sistema está implantado há mais de dez anos na comarca e consta do termo de audiência de todos os réus. Na primeira correição ordinária a corregedoria disse que considerou a medida criativa.
Contudo, é raro um réu que se interessa em participar. A maioria não estudou até a quarta série; alguns têm ensino médio incompleto, mas não conseguem ler.
Na serventia aqui costumamos dizer: é a medida que mais reclamam.
É habitual nos depararmos com casos em que o condenado deve prestar penas pecuniárias e diz não ter condição de cumpri-la, então o Juiz propõe substituição da pena pecuniária por leitura de obras da literatura brasileira com apresentação A CADA TRÊS MESES de resumos. Passados alguns meses o advogado do sujeito volta: "Doutor, o réu falou que prefere a prestação pecuniária". Não tem jeito.
Ninguém quer participar, pois consideram algo excessivamente penoso. Isso que é oferecida uma biblioteca inteira aos presos, com apoio do Município, pode escolher qualquer coisa, até Harry Potter, embora inicialmente a imposição era de literatura brasileira.
Por enquanto continuamos levando a medida, fazendo vista grossa com resumos que se limitam a copiar a sinopse do livro ou dizer que Dom Casmurro é "sobre um carinha lá que, faz umas coisas e tem um outro carinha que...".
Me interessaria saber da realidade em outras comarcas e saber quais métodos foram empregados pra se ter êxito na medida. continuar lendo

É isto de fato engrandese o Ser Humano.
Seri muito bom se a Portaria nr 8 / 2013 , da vara de Execuções Penais , da comarca de Joinvile, fosse adptada em São Paulo e ourtros estados do Brasil, principalmente em Pedrinhas /MA , Bangu / RJ , e até mesmo SP , pois já temos até Bachareis em Direito. continuar lendo

Parabéns continuar lendo